Início Outros Comemorativos O orgulho de ser LGBTQIA+ e poder torcer em paz no Barradão

O orgulho de ser LGBTQIA+ e poder torcer em paz no Barradão

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Nesta segunda-feira, um 28 de junho, foi comemorado o Dia do Orgulho LGBTQIA+ mundialmente e, claro, no Brasil não seria diferente. Apesar de ser um dia de alegria para a comunidade, é também (e principalmente) um dia de luta e resistência pelo respeito. E claro, como qualquer outra coletividade, há na torcida rubro-negra muitos representantes.

O futebol é um meio ainda muito machista e, com isso, bastante conservador (e retrógrado). São vários relatos Brasil afora sobre preconceitos e violência contra LGBTQIA+ nos estádios, praças esportivas e até dentro dos clubes. O mais recente, por exemplo, aconteceu com o economista (e hoje influencer também) Gil do Vigor, ex-participante do BBB, que sendo torcedor do Sport, foi homenageado pelo clube, porém sofreu com o ataque preconceituoso de um dos conselheiros do clube.

Apesar disso e do conselheiro ter pedido desculpas e não ter sofrido punição aparente, o elenco do Sport se manifestou em favor de Gil. O lateral Patric, que já atuou pelo Vitória em 2017, foi às redes sociais e publicou um vídeo apoiando. Porém, não é todo jogador ou qualquer um do meio futebolístico que tem esse tipo de atitude de apoiar e, minimamente, respeitar. Quem diga o torcedor do Vitória, por exemplo, o que já sofreu no Barradão.

O torcedor Roberto Júnior, que já foi sócio do clube, nos relatou uma situação que ocorreu com ele ainda na parte externa do Barradão, quando tradicionalmente torcedores se encontram, bebem e resenham antes de entrar:

“Houve uma partida em que, antes de entrar no estádio estava conversando com meus amigos héteros e nisso um grupinho, que estavam bebendo, falou “o Barradão não é lugar de viado, vai embora que aqui não é lugar pra você”, eu olhei pra trás me perguntando se era comigo e eles apontaram pra mim e disse “é com você mesmo, viadinho”. Eu fiquei sem reação, não soube reagir e passei a partida toda com medo daquelas pessoas aparecerem, não consegui prestar atenção no jogo. Medo dele aparecer, me agredir, ficava olhando pros lados.”.

Até por conta disso, Roberto deixou de frequentar o estádio e procurou outro local para ver os jogos do clube:

“Dali em diante fiquei com medo de ir pro Barradão, só fui em jogos na Arena Fonte Nova porque me sentia mais seguro. Me marcou bastante a forma agressiva que ele falou comigo, querendo me expulsar mesmo. Já na Fonte Nova eu ia com amigos gays, mas eu e eles tínhamos uma passabilidade hétero*, imagine uma trans ou um trans, ou um gay afeminado, eu acho que seria uma situação muito pior do que eu passei lá.”.

Parte da torcida usa o estádio para expor aquilo que, geralmente, retrai em outros campos da sociedade. Exemplificando: no ambiente de trabalho não faz comentários homofóbicos por conta de alguma punição ou algo do tipo, então usa a arquibancada para gritar, seja em cânticos ou em xingamentos aleatórios.

Gabriela Holanda era uma assídua torcedora de arquibancada (quando podíamos ir aos estádios antes da pandemia) e também nos relatou um dos seus principais receios quando está no Barradão: o machismo.

“Eu não me sinto à vontade no Barradão pra agir como qualquer casal hétero age, mesmo com pequenos gestos como pegar na mão, beijar, abraçar, porque tenho muito medo das ameaças físicas podem ocorrer principalmente por homens que se sentem ameaçados como “ah, meu filho tá aqui e não tem esse costume”, ameaças verbais. Além do cunho sexual que tem pra muitos homens, fazendo piadinhas que nem cabe ficar relatando.”

As ditas piadinhas aumentaram bastante com o passar dos anos. O lendário atacante Ricky, ídolo na década de 80, recebeu o apelido de “gazela” relacionada a uma característica do animal: a forte impulsão nos saltos. Hoje em dia esse apelido passaria batido e seria somente falado pra relacionar com a impulsão?

Gabriela Holanda e sua namorada, Ludmila Bazilio, no Barradão. Imagem: Arquivo Pessoal / Ludmila Bazilio

Atualmente, cada vez mais clubes vem se posicionando sobre o Orgulho LGBTQIA+ através de postagens em suas redes sociais e ações mais expressivas. A evolução do ser humano em sociedade simplesmente respeitar o próximo está caminhando lentamente, mas ainda caminha rumo à uma sociedade melhor. Para Gabriela isso ainda está longe de ser o ideal, pois não parece ser algo natural, mas como uma “obrigação” ou até aproveitar o hype:

“Eu acho que o combate dentro do futebol contra a lgbtfobia ainda é uma grande utopia hoje em dia. Claro que vemos alguns clubes se destacando no combate, mas ainda são minorias, porque a maioria só participa da campanha exclusivamente na data referente. É como se fossem “obrigados” a estarem ali participando como uma ação de marketing. Espero que esse combate se estenda mais e não fique somente quando tem a data que representa.”

Em 2019 um torcedor do Vitória criou uma torcida para juntar toda a comunidade, além de apoiantes da pauta, para além de torcer, debater sobre o tema e combater na arquibancada: Orgulho Rubro-Negro. O nosso torcedor Roberto chegou a fazer parte, porém vendo os ataques que a torcida sofreu nas redes sociais de torcedores héteros do clube, acabou não querendo vincular sua imagem por receio dos ataques, aliado ao trauma já sofrido anteriormente:

“Passei mais a frequentar a Brigada Marighella que há esse tipo de debate, mas eu queria estar muito mais presente com a pauta, como a torcida do Cruzeiro, a do nosso rival, tem a do Paysandu (Papão Livre), a do Santa Cruz (Coral Pride), que fazem trabalhos fantásticos. É triste que nossa diretoria não se preocupa com essa pauta, não faz ações de verdade.”

Inclusive ele cita o episódio em que o clube chegou a sofrer um processo por lgbtfobia:

“Participei do processo que o clube foi processado por lgbtfobia por conta da camisa lgbt tricolor de cabeça pra baixo e o diretor de marketing do Vitória simplesmente disse que nunca tinha ouvido em torcida lgbt do Vitória, que não estava cadastrada e não reconhecia, que nunca tinha sido procurado sendo que já tentamos buscar o clube antes fazer algum tipo de ação. Mas a direção já mostrou o contrário, com declarações homofóbicas.”

E essa falta de ações que acolham os torcedores LGBTQIA+ foi o motivo de Ramon Santana, torcedor e programador do nosso site Arena Rubro-Negra (um dos membros mais antigos), se afastar não só do Barradão mas do futebol em geral:

“Observo que a questão de se sentir acolhido no estádio tem a ver com a falta de representatividade no mundo do futebol, em especial no Brasil. Da repulsa da torcida contra qualquer ação dos clubes voltada à diversidade a falta de atletas declaradamente LGBTQIA+, por exemplo, afasta-se qualquer chance de representatividade o que, por sua vez, distancia tal público desses espaços. Sem representatividade, não há sentimento de acolhimento; sem acolhimento, não há interesse em ocupar esses espaços, pois, para mim, pouco me interessa ir ao Barradão para eu ser quem eu não sou. Precisamos de ações enérgicas para mudar essa lógica, de modo que possamos construir espaços de diversidade e respeito.”.

Esse acolhimento, geralmente, é encontrado nos amigos que também frequentam o Barradão, como cita Gabriela:

“Temos uma bolha de amigos que sabem, nos apoiam e nos acompanham, mas o estádio em si na maioria, acho muito perigoso pelos machistas, pelos preconceituosos, uma predominância masculina. Eu não fico à vontade, minha namorada fica mais, ela quer combater e essa é a maneira dela, me abraçando, me beijando, mas eu particularmente ainda não fico à vontade, não consigo ainda quebrar esse medo, tanto dentro como fora do estádio.”

Roberto Júnior e seu namorado, devidamente trajados com o manto sagrado rubro-negro. Imagem: Arquivo Pessoal / Roberto Júnior

A luta ainda é árdua, mas ninguém pensa em desistir. E é assim que deve ser, aproveitando o ensejo e compartilhar o sonho de Roberto, que pode ser de vários outros torcedores que esperam a seguranã de ir ao Barradão ou qualquer outro estádio poder ser exatamente quem é, poder abraçar o amor da sua vida ao comemorar um gol:

“Espero um dia poder ir com meu namorado, que é Vitória também, andar de mãos dadas como qualquer casal hétero faz, comemorar um gol e abraçar e beijar como casais. Com meus filhos futuramente, todos com o uniforme, enfim sonho com isso no futuro. A luta ainda é muito grande, mas vamos chegar lá. Com muito ativismo e militância, desde o StoneWall** até hoje que a gente avançou alguns passos e ainda tem muitos. Tenho fé num futuro em que a gente tenha lgbt em cargos executivos na diretoria, quem sabe um presidente lgbt, espero um dia ver isso realizado”.

Sobre as observações:
* = termo usado por homossexuais sobre comportamento, ou seja, não mostrar resquícios de feminilidade.
** = acontecimento histórico de 1969 em Nova York-EUA em que, após a polícia local tentar prender cerca de 13 pessoas lgbt em um bar, uma passeata foi organizada como protesto. A data foi 28 de junho, por isso ficou marcado como o dia do Orgulho LGBTQIA+


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